Pontos Principais sobre o Carma

O carma refere-se aos impulsos mentais que nos fazem agir, falar ou pensar de forma compulsiva. Dando vazão a esses impulsos, reforçamos velhos hábitos. Como resultado, vemos nosso estado de humor melhorar e piorar, e repetimos incontrolavelmente nossos padrões de comportamento. Mas os resultados cármicos não são predeterminados, não são fixos: podemos influenciar o que estamos experimentando. Podemos diminuir a intensidade do que vivenciamos, já que ela depende de vários fatores que estão sob nosso poder.

Carma e as Quatro Nobres Verdades

Hoje à noite nós falaremos sobre carma. Este é um tema central no budismo. Podemos ver a sua importância quando percebemos como ele se aplica às quatro nobres verdades, os quatro fatos que são reconhecidos como sendo verdadeiros por todos os seres altamente realizados. Esses quatro foram ensinados por Buddha como a estrutura básica de seus ensinamentos.

O primeiro fato da vida é que esta é difícil e repleta de problemas. Quais são esses problemas? Primordialmente, eles são os sentimentos relacionados a diferentes níveis de felicidade e infelicidade que temos a cada momento. Este é o real problema.

Às vezes temos experiências de intenso sofrimento, de infelicidade e dor, que obviamente são problemas. Outras vezes, porém, vivenciamos uma felicidade transitória, que não perdura. Esta felicidade passageira contem muitos problemas, ela é chamada de “felicidade maculada”, pois está maculada com confusão. Isso quer dizer que não somente ela não perdura, como também não nos traz satisfação. Temos a felicidade de comer uma boa refeição e nos sentir saciados, mas esta sensação não permanece; ela não elimina de vez o problema de estarmos famintos. Quanto mais comemos durante uma refeição, mais felizes deveríamos ficar; mas este não é o caso. Se comermos demais, ficaremos doentes. Tampouco temos a certeza do que acontecerá quando a nossa felicidade acabar. Podemos nos sentir felizes em relação a outro acontecimento, infelizes ou neutros. Não há nenhuma segurança nesta felicidade transitória, então, há um problema. Talvez desfrutemos desta felicidade passageira tal qual ela é, mas ela não realmente solucionará nossos problemas. Sempre queremos mais e mais.

O terceiro tipo de problema real é a experiência na qual temos um sentimento neutro. Nós vamos dormir e nos sentimos vagamente neutros, não há muita coisa acontecendo. No entanto, novamente isso não resolve nossos problemas, não podemos dormir para sempre.

Um desses sentimentos – feliz, infeliz, ou neutro – nos acompanhará a cada momento de nossa existência samsárica. Isto é o que Buddha descreveu como o verdadeiro problema; não se trata apenas de não conseguir achar um emprego. É muito importante entender que estamos falando de todos os momentos, não só de certos momentos.

Todas essas experiências problemáticas da vida vêm de uma causa. Basicamente, a causa delas é o carma, junto com as emoções e ações perturbadoras. Vamos compreender isso assim. Os verdadeiros problemas são o amadurecimento do carma e as verdadeiras causas são carma, ou seja, o verdadeiro cessar é o verdadeiro cessar do carma e das emoções perturbadoras, e o verdadeiro caminho mental é a compreensão que trará o verdadeiro cessar. Assim sendo, o carma é um tema muito central nos ensinamentos budistas; portanto é muito importante compreender do que se trata.

As Definições de carma

Quando olhamos para as definições de carma, descobrimos que ele é definido de forma diferente em diferentes sistemas budistas, como quase tudo no budismo. Vamos nos ater aqui à versão mais simples, de acordo com a qual o carma é um impulso mental (sems-pa). É o impulso mental que nos leva em direção a uma experiência em particular. O carma não é uma ação em si. Muitas vezes as pessoas ficam confusas, pensando que ele se refere às ações, especialmente desde que alguns tradutores traduzem carma como “ação”. Não se trata absolutamente da ação, mas do impulso que leva à ação.

Este impulso que nos levará a agir é um fator mental que sempre é acompanhado de três adicionais fatores mentais. O primeiro é distinção (‘du-shes), termo normalmente traduzido como “reconhecimento”. Distinguimos um objeto a partir de um campo sensorial: esta pessoa em contraposição àquela, este objeto em contraposição ao outro. Precisamos distinguir o objeto para o qual nossa ação será dirigida. O segundo é uma intenção (dun-pa), que é também como o objetivo: o que intencionamos fazer? Temos a intenção de machucar esta pessoa ou de ajudá-la? E em terceiro lugar, há uma emoção que o acompanha. Pode ser uma emoção perturbadora, como raiva, ou uma emoção positiva, como amor. Queremos machucar alguém porque estamos com raiva ou ajudar a pessoa porque sentimos amor por ela. O impulso que nos leva a cometer a ação é o carma.

O Significado Budista da “Motivação”

Outra palavra que às vezes é pouco clara para nós no ocidente é “motivação” (kun-slong). O emprego ocidental desta palavra geralmente se refere à emoção que está por detrás de algo. Dizemos que fomos motivados por amor ou raiva. No entanto, quando ouvimos a palavra motivação em um contexto budista, trata-se da tradução de uma palavra que não tem o mesmo significado que motivação tem no ocidente. A intenção ou o objetivo é o principal aspecto de uma motivação do ponto de vista budista e a emoção que lhe dá suporte é secundária. Provavelmente seria melhor, ao invés de traduzir esta palavra como “motivação”, descrevê-la como “o enquadramento mental que a motivou”.

Por exemplo, no início de qualquer ensinamento, quando ouvimos “reafirme a sua motivação”, em primeiro lugar, isso quer dizer reafirmar o objetivo, que significa o nosso propósito: por que estamos aqui? O propósito é aprender algo que nos ajude a ir em uma direção segura de refúgio ou alcançar o despertar para ser capaz de beneficiar outros de forma mais plena. Por isso, nós o fortalecemos ou reafirmamos. A emoção que acompanha aquele objetivo é compaixão e amor por todos os seres, mas este não é a principal ênfase para fortalecer a nossa motivação. É claro que também temos que reafirmar nosso amor e nossa compaixão, que são, a partir de nosso ponto de vista ocidental, as emoções que motivam aquilo que estamos fazendo. Mas o budismo está se referindo a um enquadramento mental muito mais vasto.

É útil diferenciar entre todos os fatores mentais que estamos examinando, pois assim se torna mais fácil reajustá-los quando há algo de inadequado com algum deles. Se não os diferenciarmos dessa forma, então será muito difícil saber como corrigir ou reajustar o nosso estado mental.

Carma Físico, Verbal e Mental

Então, temos um impulso ou carma. Quando falamos de carma físico, verbal e mental, trata-se do impulso de fazer algo, dizer algo e pensar algo. Geralmente este último não nos leva a pensar sobre algo apenas por um instante, mas por um período de tempo, como pensar em como se vingar de alguém e planejá-lo. Quando falamos de atos físicos e verbais, estes normalmente começam com impulsos mentais, um carma mental. O impulso de fazer algo vem antes. Por exemplo, “Eu acho que vou ligar para tal pessoa”. Isto é um impulso mental. Há uma emoção que o acompanha, um objetivo e assim por diante, e sua própria distinção do objeto. Então o carma físico ou verbal é o impulso com o qual começamos a ação e o impulso que vem a cada momento que sustenta a ação até que ela seja concluída. Isto é carma físico e verbal.

É claro que fatores mentais podem se tornar diferentes do que eles eram no início. Por exemplo, achamos que íamos falar com nosso amigo, mas a filha dele atendeu e pensamos que era a voz da mãe e começamos a falar com ela. Ou originalmente, a emoção era amor, mas então no meio da conversa nós ficamos com raiva da pessoa. Tínhamos a intenção de dizer algo gentil ou algo maldoso, e enquanto estávamos falando esquecemos o que íamos dizer. Todas essas coisas são variantes e o carma é apenas o impulso de fazê-lo, como o impulso de falar. É claro que o impulso não ocorre por si só – ele acontece juntamente com todos esses fatores – mas nenhum deles é a ação em si. A ação em si é algo diferente.

Ação em si é o que chamamos de “força cármica positiva” (bsod-nams) ou “força cármica negativa” (sdig-pa). Isto geralmente é traduzido como “mérito” ou “pecado”. Refere-se à ação em si, que age como uma força cármica. Quando termina, há um resultado cármico que continua com a nossa continuidade mental – potenciais, tendências, hábitos constantes e cármicos, e assim por diante. Eles são abstratos. Eu não discutirei agora os diferentes tipos de resultado porque é demasiado complexo. Porém, quando emoções e atitudes perturbadoras os ativam, este resultado cármico amadurece em várias consequências em uma experiência que varia de momento para momento.

O Amadurecimento do Resultado Cármico

Como amadurece o resultado cármico?

  • Sentimentos de felicidade, infelicidade, ou neutros – poderíamos fazer a mesma coisa hoje e ontem, mas ontem nós nos sentimos felizes fazendo isso e hoje estamos infelizes fazendo isso. Este é o amadurecimento do carma. Eu usarei a expressão “amadurecimento do carma” de forma muito solta aqui.
  • A experiência dos agregados de nosso renascimento e o ambiente no qual nascemos e no qual nos encontramos – ou seja, o tipo de corpo que temos, a mente que temos, a nossa inteligência ou falta de inteligência e assim por diante – e neste renascimento, os diferentes momentos de felicidade e infelicidade.
  • O sentimento a cada momento que queremos fazer algo semelhante ao que fizemos antes – por exemplo, “Eu sinto que quero ligar para alguém; eu sinto que quero gritar com você”. “O que você tem vontade de fazer?” “Sinto vontade coçar a minha cabeça”. Isto é o amadurecimento do carma: aquilo que temos vontade de fazer. Quando sentimos vontade de fazer algo pode vir o impulso de fazê-lo. Sentir que queremos fazer algo (‘dod-pa) e o impulso de fazê-lo são duas coisas diferentes.
  • A experiência de uma situação semelhante a algo que fizemos com as mesmas coisas acontecendo conosco – estamos sempre gritando com outros e agora vivenciamos pessoas gritando conosco, ou sempre somos gentis com os outros e vivenciamos pessoas sendo gentis conosco.

Todas essas coisas acontecem em diferentes ritmos. Isso significa que diferentes coisas amadurecem em diferentes momentos, se mesclam de diferentes maneiras, e nunca sabemos o que virá a seguir. Nunca sabemos se nos sentiremos felizes ou infelizes no próximo momento e não sabemos o que teremos vontade de fazer daqui a cinco minutos. Isto muda o tempo todo. Alguém me chama por telefone e quer me vender algo... Quem sabe o que acontecerá? Às vezes trata-se de coisas bacanas e outras vezes desagradáveis. Há altos e baixos o tempo inteiro e não fazemos a mínima ideia do que virá a seguir – esta é a incerteza. É horrível, não é? Não apenas isso, mas de maneira geral nossos renascimentos também passam por altos e baixos.

Do ponto de vista do Mahayana, há algo mais que amadurece do carma: a cada momento estamos constantemente produzindo e vivenciando aquilo que eu chamo de

  • Percepção de periscópio” – podemos ver apenas um pouquinho daquilo que está ocorrendo e as suas causas. Este também é um resultado do carma. Não temos nenhuma ideia por que as coisas estão acontecendo conosco ou quais serão os resultados de nossas ações, então temos uma visão de túnel bem limitada. Este também é um resultado do carma. Ele faz de nós “seres limitados”, seres com mentes limitadas, em contraposição a Buddhas oniscientes.

Todo este amadurecimento do carma é a primeira verdade nobre, os verdadeiros problemas. Eu penso que agora podemos apreciar um pouco mais o que o Buddha quis dizer quando se referiu ao primeiro fato da vida, os verdadeiros problemas; é o amadurecimento do carma. O que é terrível é que estamos tão confusos que fazemos com que o carma amadureça e criamos novos impulsos para perpetuar o ciclo. Isto é descrito nos doze elos da originação interdependente.

É importante lembrar que a discussão de carma inclui impulsos que não apenas nos trazem comportamento destrutivo, mas também comportamento construtivo mesclado à confusão e comportamento indeterminado mesclado à confusão. Uma ação construtiva mesclada à confusão seria: “Eu quero ajudar você porque eu quero que você goste de mim e seja legal comigo.” Ou “eu quero ajudar você para sentir que você precisa de mim, pois isso me faz sentir importante e útil.” Ou poderia ser o impulso de fazer algo indeterminado, podendo ser construtivo ou destrutivo, como constantemente girar os dedos ou bater na mesa ou levantar e baixar nosso joelho ou algo do gênero. Isto está mesclado à confusão. Somos ingênuos porque não realmente entendemos que isto de fato é irritante para outras pessoas e nos faz parecer ridículos.

O carma fala de todos esses tipos de comportamentos, dos impulsos que levam a eles.

As Quatro Leis Gerais do Carma

Há quatro leis gerais do carma.

A Certeza dos Resultados

Isto está expressado de uma forma muito especial. Se vivenciamos infelicidade, é certo que isto está amadurecendo a partir de nosso comportamento prévio e destrutivo. Isso não quer dizer que se cometermos ações destrutivas, é certo que elas amadurecerão como infelicidade. Por quê? Porque podemos purificar carma negativo. Se isso fosse constatado desta forma, isso significaria que é impossível purificar carma. Se vivenciamos infelicidade, podemos ter certeza que ela veio de comportamentos destrutivos; se experienciamos felicidade, podemos ter certeza que ela amadureceu a partir de comportamentos construtivos. É muito importante compreender a relação entre comportamento e sentir um nível de felicidade ou infelicidade. Não estamos dizendo que se você agir de forma destrutiva, isso produzirá infelicidade.

Vamos olhar para as muitas variantes deste relacionamento entre sentimentos e ações. Não estamos falando aqui sobre a felicidade e a infelicidade que nossas ações provocam em outras pessoas, não há certeza disso. Por exemplo, recentemente eu deixei meu computador em uma loja para que fosse consertado e ele foi roubado da loja. Eu fiquei muito feliz porque aquele computador estava quebrando e agora eu posso receber o dinheiro do seguro para comprar um novo modelo. O roubo não provocou a minha infelicidade. Esta lei do carma está falando sobre a experiência da felicidade ou infelicidade da pessoa que comete a ação.

Não é certo o que sentiremos enquanto estivermos realizando alguma ação específica; não é necessariamente relacionado com aquela ação. Podemos refrear diante de uma ação sexual inapropriada, como ter sexo com o parceiro de outra pessoa, e nos sentirmos muito infelizes ao fazer isso. Também não é absolutamente certo o que sentiremos imediatamente após a ação: “Eu estava ajudando alguém e quando a pessoa foi embora, eu fiquei muito deprimido.” E como dissemos, não é nem mesmo certo que esses sentimentos amadurecerão mais tarde, pois podemos nos purificar das consequências cármicas de nossas ações. A única coisa certa é que estamos vivenciando esses sentimentos, não importa quando isso acontece, eles são o resultado de alguma ação prévia, construtiva ou destrutiva. Se estivermos nos sentindo infelizes enquanto evitamos cometer adultério, este é o amadurecimento de alguma ação prévia e destrutiva.

Eu também deveria mencionar, já que talvez algumas pessoas fiquem confusas em relação a isso: o que é uma ação construtiva? Evitar matar é uma das dez ações construtivas. Eu não penso em sair e matar pessoas, então o fato de que eu não mato pessoas não é a ação construtiva de evitar matar pessoas. A ação construtiva seria, por exemplo, se houvesse um mosquito zumbindo em volta de minha cabeça e eu sentisse que queria matá-lo, mas então penso nas consequências do ato e não o faço. Neste momento, evitar matar é a ação construtiva de não matar. Quando falamos deste tipo de comportamento construtivo de evitar as ações destrutivas, isso é muito ativo; não se trata apenas de dizer, “Bem, eu nunca mato, então posso logo fazer o voto de não matar”. Isso não é forte o suficiente. É claro que é sempre benéfico tomar um voto, mas a ação realmente construtiva é evitar uma ação destrutiva quando sentimos vontade de realizá-la, pois entendemos as consequências. É claro que também existem ações construtivas de ajudar alguém ou dar algo a alguém. Essas são de outro tipo.

Uma Pequena Ação Podem Vir Enormes Resultados

Dizemos algo ruim a nosso parceiro e quanto mais tampo deixamos passar sem tentar resolver o problema, mais cresce o ressentimento. Todos conhecemos isso em nossa experiência individual.

Se Não Tivermos Cometido Certo Tipo de Ação, Não Vivenciaremos Seus Resultados

Muitas pessoas morrem em um acidente de avião, mas poucas sobrevivem. Por quê? Elas não criaram a causa para morrer no acidente, então elas não vivenciam os resultados. Se realmente tivermos nos purificado completamente de todo o nosso carma, então não há nada a temer. Mesmo se formos para um lugar perigoso com ladrões e assim por diante, não faremos a experiência de sermos roubados porque nós nos purificamos da causa cármica de sermos roubados. Ninguém podia machucar o Buddha, por exemplo.

Se Realizarmos uma Ação, o Resultado Cármico em Nossa Continuidade Mental Não Se Dissipará por Si Mesmo

O resultado cármico não se tornará tão velho a ponto de não amadurecer. Eventualmente, em algum momento, a menos que o tenhamos purificado, ele amadurecerá. Pode levar um milhão de anos, mas ele amadurecerá a menos que o tenhamos purificado até a dissolução.

Essas são as leis gerais do carma. Uma ação também pode criar muitos resultados em muitas vidas. O exemplo usado nas escrituras é que alguém chamou um bodhisatva de macaco e renasceu como macaco quinhentas vezes. Se podemos ou não nos identificar com este ponto não vem ao caso, o importante é que a coisa toda não é tão linear assim. Uma ação pode ter muitos resultados em diferentes vidas e muitas ações juntas podem levar a um único resultado. Este exemplo é útil se fizer com que pensemos duas vezes antes de chamar um policial de “porco”.

Os Quatro Fatores Necessários para que os Reultados Cármicos Sejam Plenos

Quando falamos de uma ação cármica, quatro fatores precisam ser completos para que os resultados sejam plenos. Se um desses fatores estiver faltando, o resultado não será tão intenso. Mas isso não significa que não haverá resultados.

  • Uma base – é necessário que haja um ser ou um objeto para o qual a ação é direcionada. Pensamos que alguém estava no banheiro há muito tempo e começamos a gritar com esta pessoa, mas então percebemos que não havia ninguém lá dentro. Isso não é tão pesado como seria se houvesse realmente alguém lá dentro. Tem que haver alguém escutando e entendendo nossos gritos, acreditando que estamos falando sério. Se a pessoa for surda, ou estiver escutando rádio e não puder nos ouvir, então não é tão forte.
  • A conjuntura motivacional –  uma combinação de três componentes. Primeiro, é necessário que se identifique com precisão o objeto. Por exemplo, eu pensei que eu tivesse pegado meu guarda-chuva, mas eu estava errado e peguei o seu sem querer. Se fizermos isso sem querer, então a ação terá um resultado muito mais fraco do que se escolhermos e roubarmos o melhor guarda-chuva. Entretanto, mesmo se o pegamos sem querer, ainda se trata de uma ação destrutiva; apenas não tão pesada. O segundo componente é a intenção que vem com a motivação. Se não houver a intenção, é como quando estamos dançando com alguém e não intencionamos pisar no pé da pessoa, mas pisamos. Isso é muito menos pesado do que se o fizermos intencionalmente. O terceiro componente é uma emoção perturbadora que esteja nos motivando, no caso de uma ação destrutiva. Se matarmos um mosquito que está zumbindo em volta da cabeça de nosso bebê e o fizermos não por ódio ao mosquito, mas por amor ao bebê e desejo de protegê-lo, é bem diferente do que matar o mosquito porque o odiamos. Tudo isso foi o segundo fator, a conjuntura motivacional.
  • A implementação de um método que faça com que a ação ocorra - temos que fazer alguma coisa para que a ação ocorra. Se eu planejei gritar com você, mas então alguém bateu na porta ou o telefone tocou e eu não gritei, o resultado não é tão forte como se eu o tivesse feito. Se eu apenas sonhei que matei você, eu não o fiz na vida real. Ainda que o assassinato no sonho seja uma ação destrutiva e possa ser acompanhado de muita raiva e assim por diante, e pode ser que matemos a pessoa intencionalmente no sonho, o resultado não será tão pesado como se matássemos a pessoa na vida real porque não há uma ação envolvida no processo.
  • Uma finalização completa – se atirarmos em alguém querendo matar a pessoa e apenas atirarmos em seu braço, a nossa ação não teve a conclusão que queríamos; então ela não é tão pesada. Se realmente queríamos machucar alguém com nossas palavras e não machucamos a pessoa, porque ela não acreditou em nós ou por algum outro motivo, não será tão pesado como seria se realmente tivéssemos machucado a pessoa. O mesmo acontece quando mentimos e a pessoa não acredita em nós. Podemos ver que os resultados de nossas ações são bastante complexos; há muitos diferentes fatores envolvidos.

O mesmo ocorre com ações positivas. Por exemplo, eu queria ajudar você, mas acabei ajudando outra pessoa ao invés disso. Eu não realmente tive a intenção de ajudar você, mas o que eu fiz o ajudou de qualquer maneira, ou eu fiz algo para ajudá-lo e não ajudei absolutamente. Isso acontece com frequência. Cozinhamos uma refeição bacana para alguém para fazer um agrado e a pessoa engasga e vai para o hospital. Ou então ela odeia a comida; acha que o gosto é terrível. Todas essas coisas têm a ver com ações construtivas também.

Carma de Lançamento e Carma de Completamento

Uma outra divisão do carma é o que chamamos de “carma de lançamento e carma de completamento”.

  • O carma de lançamento (‘phen-byed-kyi las) é um impulso que nos jogará em uma futura vida. Para ser mais específico, é um impulso tão forte de que o seu resultado cármico pode nos jogar em uma vida futura. Essa ação pode determinar o tipo de renascimento que teremos. Por exemplo, como cachorro ou como ser humano. Isto é quando o impulso é acompanhado por uma intenção muito forte e uma emoção muito forte. Se realmente agirmos de acordo com o impulso e ele atingir o fim que intencionamos, ele pode determinar o tipo de renascimento que teremos. A isso chamamos de “carma de lançamento”.
  • O carma de completamento (rdzogs-byed-kyi las) é quando a intenção ou a motivação e a emoção que acompanham não são tão fortes. Isso resulta nas circunstâncias que completarão o renascimento neste estado específico de renascimento. Por exemplo, se seremos um cachorro abandonado nas ruas da Índia ou um poodle em uma casa de pessoas ricas do Ocidente. Existem quatro possibilidades: pode haver um lançamento positivo e um completamento negativo, um lançamento negativo e completamento negativo e assim por diante.

Carma Efetivado e Carma Reforço

Outra parte realmente bastante interessante é o “carma efetivado” e o “carma reforço”.

  • O carma efetivado (byas-pa’i lasrefere-se a qualquer impulso cármico, físico ou verbal, que tenha nos levado a cometer uma ação física ou verbal, com ou sem uma reflexão prévia. 
  • O carma reforço (bsags-pa’i lasrefere-se a qualquer impulso cármico que reforce os potenciais e tendências cármicas de nosso contínuo mental, no sentido de reforçar e potencializar sua força. São impulsos cármicos que derivam da reflexão e posterior decisão de dizer ou fazer algo.  

A partir desta distinção podemos ver que há quatro possibilidades. Por exemplo, eu planejei machucar, ou então ajudar você, e acabei não fazendo isso; eu não planejei ajudar você, mas ajudei; eu planejei fazer isso e eu realmente fiz. Ou eu não planejei e não fiz.

Somente com as ações que planejamos fazer, e de fato fazemos, que definitivamente vamos experienciar seus resultados.

Porém, muitas vezes as pessoas não compreendem bem esta classificação e pensam que há algumas ações que não produzirão resultados e outras que produzirão. Esta distinção não trata disso, embora seja possível que purifiquemos a continuidade mental do resultado cármico das ações destrutivas, e neste caso não precisamos experienciar os resultados destas. Porém, quando falamos sobre a certeza de resultados neste contexto, falamos primariamente sobre a certeza de quando eles amadurecerão. Pois não há a certeza de quando aquelas ações planejadas que não realizamos amadurecerão. Elas podem amadurecer em qualquer momento – nesta vida, na próxima, ou em outra vida depois. Se não acreditarmos em vidas futuras, como muitos ocidentais não acreditam, é importante saber quais ações amadurecerão nesta vida. De fato, estas tem que ser planejadas e realizadas.

Ações Cármicas, cujos Resultados vão Amadurecer Nesta Vida

Em geral, há quatro tipos de ações cármicas, destrutivas ou construtivas, que trazem resultados que começarão a amadurecer nesta vida. No entanto, seu amadurecimento pode continuar igualmente nas vidas futuras.

  • As ações destrutivas que ocorrem por causa de apego excessivo ao corpo, aos bens, ou à vida, e as ações construtivas que vêm do descaso extremo por qualquer um desses três. Por exemplo, eu sou tão apegado ao meu carro e você bateu nele, então eu vou até o seu carro com um bastão de baseball e estilhaço o vidro. Ou poderia ser que estou tão apegado a não ficar doente que recuso ajuda a uma pessoa que está com uma doença contagiosa. Por outro lado, eu poderia ser tão desapegado de meu corpo que entro em um edifício em chamas para salvar uma criança que está presa lá dentro.
  • As ações destrutivas provocadas por pensamentos extremos de malícia em relação a alguém, como torturar um prisioneiro inimigo, ou uma ação construtiva provocada por pensamentos extremos de altruísmo e amor, como cuidar de um soldado inimigo que está machucado.
  • As ações destrutivas provocadas por um desejo extremo de prejudicar o Buddha, o Dharma ou a Sangha, os mestres espirituais e assim por diante, como destruir um monastério e executar monges. Isso também inclui ações construtivas provocadas por uma crença extremamente confiante nas boas qualidades das Três Jóias e os professores espirituais, como construir uma stupa ou fazer uma doação para uma publicação do Dharma ou para construir um centro budista.
  • As ações destrutivas baseadas na total falta de gratidão e respeito dirigidas contra alguém que nos ajudou muito, como nossos pais ou professores, ou ações construtivas dirigidas para eles e baseadas no desejo de retribuir sua gentileza. Por exemplo, não tomar conta de nossos pais quando eles estão idosos e doentes ou ajudar nossos professores espirituais com seus projetos. Mas lembre-se, temos que realmente pensar em realizar tais ações e não apenas realizá-las espontaneamente ou ser forçados a fazê-lo.

Fatores que Afetam a Força do Amadurecimento do Carma

O resultado cármico de nossas ações pode ou amadurecer em algo forte ou pesado ou então em algo leve e trivial. Então, a última coisa que quero discutir aqui são alguns desses diferentes fatores que afetam a força dos resultados que amadurecem de um carma, seja ele positivo ou negativo. A lista é bastante longa.

  • A natureza das ações ou dos fenômenos envolvidos – isto em termos do sofrimento ou da felicidade que ela causa à outra pessoa em termos gerais. Matar alguém é mais pesado do que roubar um carro; salvar a vida de alguém é mais forte do que dar dinheiro a essa pessoa.
  • A força da emoção, seja ela perturbadora ou positiva, que acompanha o impulso – machucar alguém com forte ódio é muito mais forte do que machucar alguém com apenas um pouco de raiva. Para economizar tempo, darei exemplos para o restante da lista, especialmente para as ações destrutivas, mas vocês podem inferir exemplos para as ações construtivas também.
  • O ímpeto distorcido e compulsivo – em outras palavras, independente de uma postura distorcida e antagônica acompanhar ou não a ação, nós pensamos que não há nada de errado, e que é bom fazer isso. Por exemplo, vamos para a guerra para matar todo mundo de um certo grupo étnico e pensamos que isto está perfeitamente correto e todo mundo que pensa que isso é errado é burro. Isto é uma postura distorcida e antagônica. Ou então que é perfeitamente correto matar animais porque eles foram criados para o nosso uso. Se há este tipo de postura, a ação é pesada.
  • A ação em si – isto trata da quantidade de sofrimento causada à vítima quando a ação for realizada. Arrancar as asas de uma mosca é bem mais pesado do que apenas esmagá-la com um mata-moscas.
  • A base para a qual a ação está dirigida – isso varia de acordo com a quantidade de benefício que nós ou outros recebemos daquele ser no passado, ou receberemos no presente e futuro, e de acordo com as boas qualidades do ser. Essas boas qualidades incluem o objetivo que o ser alcançou ou que quer alcançar. Por exemplo, matar um monge ou uma monja é mais pesado do que matar um leigo por causa de seu objetivo e suas qualidades. Ou matar Mahatma Ghandhi é mais pesado do que matar um criminoso ou um frango.
  • O estado ou as realizações do ser para o qual a ação foi dirigida – é mais pesado se a vítima for alguém que acabou de fazer um retiro. Se machucarmos alguém que está doente em oposição a alguém que está saudável, é mais pesado.
  • O nível de consideração, quanto respeito temos em relação ao ser em questão – machucar alguém que respeitamos é diferente que machucar alguém que não respeitamos. Eu tenho muito respeito pelo meu professor espiritual, então mentir para ele é mais pesado do que mentir para um estranho por quem eu não tenho um respeito especial.
  • A condição de base – é mais pesado matar quando fizemos o voto de não tomar a vida de outro ser do que quando não fizemos voto algum.
  • A frequência ou o hábito – se realizamos uma ação específica muitas vezes no passado, ela é mais pesada. Se sempre caçamos durante toda a nossa vida, é mais pesado do que apenas atirar em um animal uma vez.
  • O número de pessoas envolvidas em cometer a ação – se somos parte de uma gangue que espanca alguém, é mais pesado do que apenas fazer isso sozinho. Por outro lado, fazer uma puja com um grupo grande de pessoas é uma ação positiva mais forte do que apenas fazê-la sozinhos em nossos quartos. Por isso, os tibetanos gostam de fazer pujas em grandes grupos. Depois, há a continuidade, se repetimos ou não a ação no futuro.
  • A presença ou ausência de forças opostas – em outras palavras, se fizermos algo destrutivo, se nós o contrabalançaremos ou não com muitas coisas construtivas, se for compensado ou não por muitas coisas destrutivas.

Embora isso pareça ser uma lista muito longa e talvez um pouco tediosa de ler, ainda assim ela indica alguns pontos que são uma grande ajuda se precisarmos fazer algo negativo ou positivo e quisermos saber como enfraquecer ou fortalecer a ação. Se temos que fazer algo destrutivo, como dedetizar nossa casa por causa de baratas ou algo do gênero, podemos tentar fazê-lo sem ódio, não fazê-lo com tanta frequência, e não convidar todos os nossos amigos, fazer uma festa para matar as baratas e pensar que isso é uma grande diversão. Por outro lado, se estivermos fazendo algo positivo, é bom convidar nosso amigos para nos acompanhar com um forte sentimento positivo e fazê-lo frequentemente, como fazer a puja em casa.

Então, esses fatores nos indicam como podemos influenciar os resultados de nossas ações até mesmo quando ainda estivermos agindo de forma compulsiva e confusa. Se vamos ajudar outros, podemos começar ajudando aqueles que foram mais gentis conosco, nossos pais, por exemplo. Se tivermos que machucar ou desapontar alguém, como quando não temos tempo de ligar para todos aqueles que nos esperam, não desapontemos aqueles que foram muito gentis conosco, como nossos pais. Isso não é apenas uma lista, mas algo com que temos que trabalhar em nossos cotidianos e em nossas ações com os outros.

A Ausência ou Presença de Forças Opostas

O último ponto na lista, a ausência ou presença de forças opostas, é especialmente importante. Isto é quando iniciamos a discussão da purificação do carma, que eu não detalharei hoje à noite. Mas mencionarei alguns poucos pontos importantes. Uma ação destrutiva é muito pesada se

  • Não a entendermos como um erro que terá consequências negativas – o oposto aqui seria admitir abertamente que foi um erro e que foi impróprio. Mesmos se não pensamos que havia algo de errado quando o fizemos, se admitirmos que foi um erro depois as consequência começarão a ser purificadas e pelo menos serão menos pesadas
  • Nós a realizamos com alegria, sem arrependimento, e nos deleitamos por ter feito isso – o oposto disso é o arrependimento.
  • Não temos nem o desejo nem a intenção de parar e não repetir isso – por exemplo, se pensarmos: “vou continuar a escutar a minha música em alto volume a qualquer hora da noite. Não me importa se meus vizinhos não conseguirem dormir.” O oposto disso seria pensar: “Vou tentar não repetir esta ação.”
  • Não pensar em reparar o prejuízo – o que se opõe a isso é aplicar as ações construtivas contrárias.

Assim obtemos as quatro forças opostas que são tão importantes na aplicação da meditação Vajrasattva ou qualquer tipo de purificação. Cada um é recomendado para um propósito específico.

Temos que adicionar mais um ítem a este ponto sobre presença ou ausência de forças opostas.

  • Fazemos algo sem o senso de dignidade moral ou cuidado em relação ao impacto de nossas ações em outras pessoas – não nos importamos com nossa honra pessoal e não nos importamos com aquilo que as pessoas pensam de nossas famílias, nossos professores, compatriotas, e assim por diante. O oposto disso é um senso de dignidade e cuidado em relação ao impacto de nossas ações sobre outros, reafirmando o nosso direcionamento seguro e a bodhichitta, “Eu estou fazendo algo positivo em minha vida”. Um exemplo seria um alemão indo a algum lugar e falando bem alto, incomodando a todos e não se importando o que as pessoas pensam sobre alemães por causa disso.

Eu acho que isso é suficiente por hoje. Se alguém tiver alguma pergunta, por favor pergunte.

Perguntas

Com a doença epidêmica que está atacando pés e boca, as autoridades decidiram sacrificartodo o gado. Por ser um membro da sociedade na qual isto está ocorrendo, esta matança do gado é uma ação em grupo, ou não é? Terei que sofrer os resultados cármicos coletivos desta ação em grupo ou não? Como evitar isso?

Antes de tudo, lembre-se da quarta lei do carma: se não realizamos uma ação, não fazemos a experiência do resultado. Se não matamos os animais, não estamos envolvidos na ação cármica. O grande número de pessoas que está realmente realizando a matança é quem está de fato envolvido com a ação cármica.

No entanto, há o ponto que se refere a alegrar-se em relação às ações dos outros. Se nos alegramos pelas ações construtivas de outras pessoas, acumulamos uma força cármica positiva; se nos alegramos pelas ações destrutivas dos outros, acumulamos uma força cármica negativa. Então se realmente pensamos que este sacrifício do gado é uma ação maravilhosa, isso é uma coisa. Mas se pensarmos que o fato de que os animais estão sendo sacrificados é algo terrível e sentimos grande compaixão, e assim por diante, então isso será uma forma positiva de pensar.

Esses animais, este gado, seria sacrificado por carne de qualquer forma, então é apenas uma questão de quando eles serão mortos. Ter compaixão por eles apenas porque estão sendo mortos por causa da epidemia, mas não nos importarmos quando eles são mortos por carne, é uma ingenuidade. Pensar com compaixão é uma ação construtiva, mas aqui ela está acompanhada da emoção perturbadora da ingenuidade. Assim sendo, temos sempre que analisar cuidadosamente todos os nossos pensamentos e ações.

Resumo

Vemos o quanto é importante compreender os diversos fatores do carma, pois, embora seja complexo – é a coisa mais complexa no budismo – ainda assim, quanto mais o entendermos, mais podemos começar a afetar e dar forma ao nosso comportamento e ao peso de suas consequências. Como neste exemplo, podemos tentar desenvolver uma compaixão geral pelo gado, não apenas porque ele está doente agora.

Que as forças positivas acumuladas por isso se tornem mais e mais fortes e que qualquer compreensão adquirida se torne mais e mais profunda, para que pouco a pouco possamos começar a enfraquecer os efeitos de nosso carma e eventualmente possamos superar todo nosso carma, para podermos ajudar a todos da melhor maneira possível.

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